Mais uma página

domingo, outubro 29, 2006

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não pelo meu ser que só atravessei,N
ão pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos atos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei

E em cujo amor de amor me eternizei.

Sophia de Mello Breyner

quarta-feira, outubro 25, 2006

Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Vinicius de Moraes

sábado, outubro 21, 2006

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,

Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

Florbela Espanca

terça-feira, outubro 17, 2006

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho
E traiçoeiro o mar...
So nos é concedida esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso procurar
O velho paraiso que perdemos.
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao quais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é o partir, não o chegar.


Miguel Torga

quarta-feira, outubro 11, 2006

"E a vida recomeçou. Todos os dias demanhã subo a Rua da Selaria para o Liceu, ouço a praga de carroças que atroam a cidade. Perto do nicho do Senhor dos Terramotos, que lhe fica ao alto e quase em frente, o cão espera o osso da janela lá de cima. Com a chuva encolhe-se a tremer no limiar de uma porta. Eu rodeio a Sé, desço uma escada íngreme junto de três arcos solitários, desço a rampa, recomeço as aulas. Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é dificil! À unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdemo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença na sua presença imediata. Um caminho é "o" caminho em cada instante que passa."
Aparição - Vergílio Ferreira

terça-feira, outubro 10, 2006

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.

Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago

sábado, outubro 07, 2006










Hoje vou "fugir" ao que costuma ser o blog e vou mostrar-vos o que fiz no feriado de 5ªfeira passada.
Acordei com vontade de andar a pé, ir ao encontro da "mãe natureza"...e assim fiz. Fui fazer uma levada.
Fazer uma levada significa percorrer os trilhos ao longo das levadas. E Levadas são pequenos canais de irrigação, feitos pela mão do homem, que transportam a água da vertente norte da ilha para a sul. São verdadeiras obras de engenharia popular madeirense, feitas há muitos anos pelos nossos antepassados.
Assim, fui até ao "interior" ilha seguindo sempre a Levada do Rei até chegar ao Ribeiro Bonito, poderiamos optar por prosseguir um percurso até às Queimadas, no entanto optamos por fazer o mesmo caminho de regresso e voltando assim ao ponto de partida, São Jorge.
(era suposto as imagens ficarem depois do texto, mas elas teimam em ficar assim...)
A primeira foto corresponde ao Ribeiro Bonito, que é onde a Levada do Rei tem inicio, a segunda foto é mais ou menos a meio do percurso, sendo este um percurso para 10,2 Km (ida e volta), as restantes fotos são imagens que captei ao longo do percurso.
Fotos de Ana Abreu

quinta-feira, outubro 05, 2006

"José Arcadio voltou feito um homem, mais alto do que tu e todo bordado a ponto cruz, mas só veio trazer vergonha à nossa casa." Julgou ver, contudo, que o seu marido se entristecia com as más notícias. Então optou por mentir-lhe. "Não acredites no que te conto", dizia, enquanto deitava cinzas sobre os seus excrementos para os apanhar com a pá. "Deus quis que José Arcadio e Rebeca se casassem e agora são muito felizes." Chegou a ser tão sincera no engano que acabou por se consolar a si própria com as suas mentiras.

Gabriel García Márquez - Cem Anos de Solidão

terça-feira, outubro 03, 2006

Surdo, Subterrâneo Rio

Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade