Mais uma página

terça-feira, junho 27, 2006

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
...

Álvaro de Campos

sábado, junho 17, 2006

Barco Negro

De manhã, que medo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia.
Mas logo os teus olhos disseram que não!
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois numa rocha uma cruz
e o teu barco negro dançava na luz...
Vi teu braço acenando entre as velas já soltas...
Dizem as velhas da praia que não voltas.

São loucas... são loucas!

Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança areia nos vidros,
na água que canta no fogo mortiço,
no calor do leito dos bancos vazios,
dentro do meu peito estás sempre comigo.

David Mourão-Ferreira

Hoje postei este poema como forma de homenagear David Mourão-Ferreira, pois ontem fez dez anos do seu desaparecimento. Este poema foi mais tarde interpretado por Amália num dos seus fados e posteriormente por Mariza.
Breve Biografia do Poeta:
Escritor e professor universitário português, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica em 1951.
Em 1963 foi eleito secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Autores e, já nos anos 80, presidente da Associação Portuguesa de Escritores.
Logo após o 25 de Abril de 1974, foi director do jornal A Capital.
Secretário de Estado da Cultura em vários governos entre 1976 e 1978, foi também director-adjunto do jornal O Dia entre 1975 e 1976.
Responsável pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1981, dirigiu, desde 1984, a revista Colóquio/Letras, da mesma instituição.
A sua carreira literária teve início em 1945, com a publicação de alguns poemas na revista Seara Nova.
Três anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estúdio do Salitre e no Teatro da Rua da Fé.
Publicou as peças Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmão (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista literária Távola Redonda, que se assumiu como veículo de uma alternativa à literatura empenhada, de realismo social, que então dominava o panorama cultural português, defendendo uma arte autónoma.
Em 1950, publicou o seu primeiro volume de poesia — Secreta Viagem. David Mourão-Ferreira colaborou ainda nas revistas Graal (1956-1957) e Vértice e em vários jornais, como o Diário Popular e O Primeiro de Janeiro.
Entre os seus livros de poesia encontram-se Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui as obras À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Poética, 1948-1988 (1988) e Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito). Ensaísta notável, escreveu Vinte Poetas Contemporâneos (1960), Motim Literário (1962), Hospital das Letras (1966), Discurso Directo (1969), Tópicos de Crítica e de História Literária (1969), Sobre Viventes (1976), Presença da «Presença» (1977), Lâmpadas no Escuro (1979), O Essencial Sobre Vitorino Nemésio (1987), Nos Passos de Pessoa (1988, Prémio Jacinto do Prado Coelho), Marguerite Yourcenar: Retrato de Uma Voz (1988), Sob o Mesmo Tecto: Estudos Sobre Autores de Língua Portuguesa (1989), Tópicos Recuperados (1992), Jogo de Espelhos (1993) e Magia, Palavra, Corpo: Perspectiva da Cultura de Língua Portuguesa (1989). Na ficção narrativa, estreou-se em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prémio Ricardo Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estações (1980, Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como ficcionista em 1986 e que lhe valeu vários prémios, entre os quais o Grande Prémio de Romance da APE e o Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, e Duas Histórias de Lisboa (1987). Deixou ainda traduções e uma gravação discográfica de poemas seus intitulada «Um Monumento de Palavras» (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados à televisão e ao cinema, como, por exemplo, Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou José Fonseca e Costa para filmar, em 1983, «Sem Sombra de Pecado». David Mourão-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por Amália Rodrigues, tal como «Madrugada de Alfama».
Recebeu, em 1996, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.

domingo, junho 11, 2006

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

O que há em mim é sobretudo cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

sexta-feira, junho 09, 2006

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e a toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me sauba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca

quarta-feira, junho 07, 2006

Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio.

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa se demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

sexta-feira, junho 02, 2006

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,

fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles